Desenvolvimento tecnológico e o futuro da atividade jurídica

NOVAES, R. V.; MAGALHÃES GOMES, M. F.; VALENTINI, R. S. ,L.; Desenvolvimento tecnológico e o futuro da atividade jurídica. In: PARENTONI, L. (Coord.), GONTIJO, B. M.; SOUZA LIMA, H. C. (Orgs.). Direito, Tecnologia e Inovação. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 989-1007. 

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Roberto Vasconcelos Novaes

Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Professor Adjunto do Departamento de Introdução ao Estudo do Direito e Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais

Marcella Furtado de Magalhães Gomes

Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Professora Adjunta do Departamento de Introdução ao Estudo do Direito e Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais

Rômulo Soares Valentini

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Professor da FPL/MG.

Resumo

O uso de ferramentas digitais na atividade do jurista, restrita no texto à atividade de aplicação e interpretação da lei, deve ser entendida no quadro dos sistemas sociotécnicos, que são compostos de ferramentas, pessoas e processos. Como as mudanças estão ocorrendo no presente momento e o ritmo de mudança é muito rápido, não é possível traçar um catálogo definitivo dos impactos. Oferecemos, portanto, o quadro conceitual de Susskind, que demonstra a comoditização dos serviços jurídicos. Este quadro nos permite entender o impacto de novas tecnologias na medida em que surgirem. A inteligência artificial, principalmente no que tange às aplicações de processamento de linguagem natural e jurimetria, forma um arcabouço à parte em relação a esta evolução. A formação do jurista precisa ser revista, e novas profissões irão surgir na medida em que velhas atividades profissionais tendem a ser substituídas pela automação.

Abstract

The use of digital tools on the juridical activity, in our text understood as the application of the Law to concrete cases, must be comprehended in the structure of sociotechnical systems, composed of tools, people and procedures. As the changes are happening right now and follow a very fast pace, it is not possible to draw a definitive catalogue of the impacts. What we offer, therefore, is the conceptual framework of the evolution of legal services created by Susskind, which demonstrates de commoditization of legal services. This framework allows us to understand the impacts of different technologies as they appear. Artificial intelligence, especially on the natural language processing and jurimetrics applications must be analysed alongside this framework. The formation of the jurist must be reviewed, and new occupations will be created as old professional activities will be replaced by automation.

1) Introdução

Você pode até dizer que eu tô por fora, ou então que eu tô inventando. Mas é  você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.

Belchior

Escrever sobre o tema ora proposto requer, primeiramente, a definição do que seja desenvolvimento tecnológico e, portanto, de tecnologia. Em segundo lugar, requer que façamos a restrição do que entendemos por atividade jurídica. Este tipo de tarefa é comum a qualquer trabalho científico e faz parte do que é comumente chamado delimitação de tema. Estes dois pontos serão abordados nos tópicos específicos abaixo. Entretanto, adiantamos que trataremos de tecnologia no contexto da revolução digital e da atividade jurídica principalmente no que tange à tarefa de aplicação da norma aos casos concretos.

O grande desafio do presente tema não advém da necessidade de se fixar um escopo para as discussões. Exsurge, sim, do momento histórico em que vivemos, no qual um dos últimos terrenos virgens (ou quase virgens) à transformação da ICT (information and communication technology) depara-se com esse inevitável encontro de contas, encontro esse que já tem provocado mudanças definitivas no mundo jurídico.

É impossível abordar todo o conjunto tecnológico a impactar a atividade jurídica em um trabalho tão curto por dois motivos principais. Primeiro, o número de novas tecnologias é enorme. Se tomarmos como exemplo o Codex Techindex [note] Disponível em: <https://techindex.law.stanford.edu>. Acesso em: 11 Mar. 2018. [/note] , mantido pela Stanford Law School, esforço que cataloga diversas legaltechs, temos nove categorias de empresas: marketplaces, document automation, practice management, legal research, legal education, online dispute resolution (ODR), e-discovery, analytics e compliance. O índice, quando da redação deste artigo, em março de 2018, contava com 791 empresas. Já o site Angel List, um hub que congrega startups, investidores e ofertas de vagas de emprego, mas que funciona como um catálogo de facto das startups do mundo todo, apontava, na mesma época, 1825 empresas de tecnologia na grande área chamada legal [note] Disponível em: <https://angel.co/legal>. Acesso em: 11 Mar. 2018. [/note]. A atuação e o tipo de serviços destas varia imensamente. Citemos, como exemplo, as cinco empresas com mais seguidores. A UpCounsel é um marketplace que conecta fornecedores de serviços jurídicos (advogados e paralegais) a tomadores destes serviços, além de oferecer a gestão de propostas, alguns formulários gratuitos e conteúdo on-line. A Air Help auxilia consumidores que tiveram atrasos em vôos a conseguir as compensações de modo totalmente automatizado. A Case Text se utiliza de inteligência artificial para realizar o trabalho de legal research, ou seja, de pesquisa de casos e suas correlações. A Lex Machina é um sistema de jurimetria (jurimetrics ou legal analytics) que prevê o comportamento do poder judiciário (possibilidade de êxito por assunto, por juiz, por corte, por advogado, duração, custo das ações e outros indicadores) a partir de uma grande base de dados. Por fim, a Modria é um fornecedor de sistemas de ODR, que está por detrás das plataformas de solução de conflitos do e-Bay e do PayPal e alega resolver 60 milhões de casos por ano [note] https://www.tylertech.com/solutions-products/modria [/note].

No Brasil, ainda que tenhamos números mais modestos, o aumento de empresas no setor também é significativo. A recém criada AB2L (Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs) lançou em outubro de 2017 o radar do setor. Na época do lançamento, o mapeamento contava com 51 empresas, divididas em oito grandes campos: conteúdo jurídico e consultoria, automação e gestão de documentos, faça você mesmo, monitoramento e extração de dados públicos, redes de profissionais, gestão de escritórios e departamentos jurídicos, analytics e jurimetria e resolução de conflitos online [note] Disponível em <https://www.ab2l.org.br/o-mapa-das-lawtechs-e-legaltechs-no-brasil-ab2l>. Acesso em: 06 jan. 2018. [/note] . Note-se que alguns setores possuem seus equivalentes nos EUA, como acima listamos, mas existem divergências típicas de cada realidade jurídica e mercadológica. O crescimento do radar desde o lançamento até o presente momento foi enorme, e a associação informa que inicia 2018 com 100 empresas associadas e uma nova categoria, a de IA para o setor público [note] Disponível em <https://www.ab2l.org.br/ab2l-inicia-2018-com-cerca-de-100-lawtech>. Acesso em: 13 mar. 2018. [/note]. Ainda que não seja composto apenas de startups ou de empresas nascentes, contando com atores antigos do mercado, o crescimento do radar demonstra a vitalidade do campo e a crescente organização do ecossistema.

A exemplificação que fizemos da dimensão e variedade das novas tecnologias foi por meio da menção às empresas e sua diversidade. Poderíamos ter optado por agrupamento de áreas da tecnologia ou de aplicação. Nosso panorama produziria uma categorização que poderia contar, e.g., com os seguintes conjuntos: bancos de dados, inteligência artificial, machine learning, sistemas de gestão, processamento de linguagem natural, comunicação e conectividade, blockchain e suas várias aplicações (criptomoedas, autenticação descentralizada, smart contracts), sistemas de recomendação e analytics, entre outras. Mesmo que fosse esta a abordagem, o quadro exibido é enorme e demonstra a impossibilidade de exaustão do assunto.

Segundo, e talvez ainda mais significativa barreira à abordagem sistemática, é a velocidade das alterações e sua simultaneidade ao momento de escrita. Esta situação do constante tornar-se de algo faz com que as previsões e análises sejam necessariamente incompletas e provisórias, colocando-nos no estado de “eternos novatos” nas palavras de Kevin Kelly:

Não importa quanto tempo usamos determinada ferramenta: os upgrades sem fim nos transformam em eternos novatos, em usuários normalmente vistos como “sem noção”. Na era do “tornar-se”, todo mundo torna-se um novato. Pior: seremos novatos para sempre. Isso deveria ser o bastante para nos manter humildes. […] Eterno Novato é o novo padrão para todos nós, independentemente de idade ou experiência.” [note] KELLY, Kevin. Inevitável. As 12 forças tecnológicas que mudarão nosso mundo. São Paulo: HSM, 2017. p. 15. [/note]

Dito de outra forma, mas imbuído do mesmo sentimento: mesmo nós, que por interesse pessoal, dedicação intelectual ou exigência profissional dedicamo-nos ao tema, sentimo-nos sobrepujados pela quantidade e rapidez das mudanças. Temos a constante sensação de desinformação ou de incompletude de nossas pesquisas, uma vez que a novidade vem cada vez em intervalos de tempo mais curtos, ou vem mesmo de modo contínuo, fazendo a sensação de ficar para trás constante e não algo a ser superado. Mesmo os mais vanguardistas, em pouco tempo, meses apenas, estão superados se não mantiverem o passo e o vanguardismo. Ou seja, mesmo este singelo artigo estaria condenado a estar superado no momento da escrita, e deveria ser reescrito a cada semana caso pretendesse ser uma simples amostra do estado da arte.

A alternativa que se mostra viável é, portanto, a de demonstrar não todos os impactos da tecnologia na atividade jurídica, nem o de realizar um catálogo das novidades, mas a de proceder por meio de exemplos de modo a fornecer o que é possível no presente momento, a saber, uma intuição do momento, uma espécie de fenomenologia do presente. Esta apresentação deve ser feita, entretanto, dentro de um quadro conceitual que permita ao leitor avaliar ou se situar nesta constante transição. Para tanto, optamos por seguir a evolução dos serviços jurídicos conforme delineada por Richard Susskind [note] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers. An Introduction to your Future. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2017. [/note] que entendemos fornecer um framework dentro do qual é possível situar e interpretar as diversas inovações do mercado jurídico.

2) Delimitação do sentido de desenvolvimento tecnológico e de atividade jurídica

Técnica advém do grego antigo τἐχνη (téchne) que significa 1) arte manual ou industrial 2) habilidade de fazer alguma coisa 3) meio, expediente 4) produto de uma arte, obra [note] BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec-Français: Édition revue par L. Séchan et P. Chantraine, Professeurs à la Faculté des Lettres de Paris. 6eme. ed. Paris: Librairie Hachette, 1950. p. 1923. [/note]. Tecnologia, por sua vez, significa, etimologicamente, “teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana” [note] INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2683. [/note]. Nota-se, portanto, que a palavra possui campo semântico muito amplo, o que justifica a necessidade de delimitação.

Esta caracterização etimológica pode ser melhor delimitada se completada pela classificação das técnicas exposta por Abbagnano. As técnicas (racionais, é preciso ser claro, uma vez que é possível se falar em técnicas mágicas ou religiosas) são agrupadas pelo autor em três campos distintos: técnicas cognitivas ou artísticas, que consistem no uso dos símbolos, em formas de explicação ou comunicação e de previsão. Técnicas de comportamento, que compreendem as maneiras pelas quais os seres humanos se relacionam entre si, tais como sistemas organizacionais, morais ou jurídicos. Por fim, refere-se às técnicas produtivas, que dizem respeito às maneiras pelas quais o ser humano transforma a natureza e produz bens para seu consumo [note] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.939-940. [/note].

Por metonímia, tecnologia pode ser entendida como “o conjunto de técnicas de um domínio particular” [note] Loc. cit. [/note]. Este derivação semântica caracteriza um dos usos mais correntes da palavra. Mais especificamente ainda, tecnologia possui o sentido usual de conjunto que engloba inventos, máquinas, materiais e substâncias, procedimentos de produção ou de gestão, instrumentos de análise, computadores (tanto a parte lógica – softwares, quanto física – hardware) e outras novidades. É nesta acepção, por exemplo, que se forma a palavra biotechnology (biotech), traduzida na década de 40 e dicionarizada.

No mesmo sentido estrito a partícula “tech” acabou por se tornar sufixo prolífico em neologismos, tais como nos recentes fintech (mercado financeiro) [note] “Yet, the term Fintech was already used as early as 1972. In a scholarly article where he was detailing models on how he had analyzed and solved daily banking problems encountered at the bank Manufacturers Hanover Trust, the Vice President of the bank, Mr. Abraham Leon Bettinger provided the following definition “FINTECH is an acronym which stands for financial technology, combining bank expertise with modern management science techniques and the computer.” SCHUEFFEL, Patrick. Taming the Beast: A Scientific Definition of Fintech. Journal of Innovation Management, v. 4, n. 4, p. 32-54. 2016. p. 36 Disponível em: <https://journals.fe.up.pt/index.php/IJMAI/article/view/322>. Acesso em: 04 jan. 2018. [/note] , insurtech (seguros) e legaltech (direito). É neste sentido restrito que tecnologia (como tecnologia computacional) será usada neste texto.

Devemos também restringir o sentido de atividade jurídica. Chamamos aqui de atividade jurídica aquela de aplicação da norma jurídica a casos concretos (jus dicere) e suas atividades correlacionadas, ou seja, de pesquisa e análise de textos normativos (pesquisa legal e jurisprudencial e análise de contratos), de armazenamento de informações (de textos, documentos e dados de gestão) e de produção de peças ou textos jurídicos (petições, sentenças e contratos). Excluímos da presente abordagem, a princípio, a atividade típica do poder legislativo, a de criação da norma jurídica (jus dare).

Esta referência da atividade jurídica engloba, portanto, o trabalho que é tipicamente realizado pelos advogados (na sua tarefa consultiva ou litigiosa – transactions or contentious) e pelos órgãos jurisdicionais do Estado (cortes, defensores, ministério público).

3) Sistemas de informação e atividade jurídica

Quando nos referimos às inovações tecnológicas e seus impactos na atividade jurídica estamos nos referindo, primordialmente, a cada vez maior presença da informática na atividade. Entretanto, esta referência intuitiva merece uma consideração sobre o que são os sistemas de informação (SI). Apenas destacar a presença de computadores no âmbito jurídico é insuficiente para caracterizar os impactos que desejamos destacar. Mas o que é um SI?

Na lição de Stair e Reynolds:

Um sistema de informação (SI) é um conjunto de elementos oucomponentes inter-relacionados que coleta (entrada), manipula(processo), armazena e dissemina dados (saída) e informações, efornece uma reação corretiva (mecanismo de realimentação) paraalcançar um objetivo.” [note] STAIR, Ralph; REYNOLDS, George. Princípios de sistemas de informação. Tradução da 9a edição norte-americana. São Paulo: Cengage Learning, 2013. p. 8 [/note]

Ressaltamos que os SI não são necessariamente informatizados. O ser humano, desde os primórdios, recorreu a diversos expedientes para realizar as tarefas apontadas na citação. Por exemplo, a historiografia tradicional registra que a escrita surge a partir de necessidades econômicas e sociais, como mecanismo de comunicação e registro militar, contábil, político ou agrícola. O aumento da complexidade social das primeiras civilizações impõe “uma carga maior sobre a memória” e “representa uma extensão fundamental da atividade simbólica, que é fundamental para o pensamento humano” [note] GOWLETT, John. Arqueologia das primeiras culturas. Barcelona: Folio, 2007. p. 182.
[/note]. Em diversas situações contemporâneas, recorremos a sistemas de informação manuais, ainda que não nos demos conta disso. É o caso do simples bloco de recados, das fichas de biblioteca ou do equivalente comercial (“kardex”), do sistema de comandas de um restaurante, ou o diário de classe de um professor. Podemos dizer que estas tecnologias manuais realizam as tarefas supra-descritas, ainda que boa parte da etapa do processamento e da reação corretiva sejam feitos mentalmente.

Atualmente, entretanto, quando se fala em sistemas de informação a referência é aos chamados CBIS (computer-based information system) que consistem em:

um conjunto único de hardwares, softwares, bancos de dados,telecomunicações, pessoas e procedimentos que são configuradospara coletar, manipular, armazenar e processar dados e informações.” [note] STAIR, Ralph; REYNOLDS, George. Op. cit. p. 11.Ou seja, ainda que existam situações que requerem soluções criadas especificamente para o episódio em tela, na maior parte das vezes os advogados (consultivos ou litigiosos) e os membros do sistema público de justiça lidam com problemas que guardam entre si grau de semelhança e repetição. [/note]

Destaca-se na definição, e na consideração supra dos SI manuais, que a tecnologia computacional é apenas parte dos SIs, que englobam, outrossim, pessoas e organizações. Devemos falar, portanto, numa visão tridimensional dos sistemas de informação (capacitação de sistemas de informação), que é uma “compreensão mais ampla de SI, que abrange um entendimento das dimensões organizacional e humana dos sistemas, bem como das suas dimensões técnicas […]” [note] LAUDON, Kenneth; LAUDON, Jane. Sistemas de Informação Gerenciais. 11 ed. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2014. p. 15. [/note]. Os CBIs são, portanto, sistemas sociotécnicos, na conhecida definição de Sommerville, ou seja, possuem sistemas técnicos baseados em computadores como um dos seus componentes, mas são formados também pela dimensão humana e organizacional:

Sistemas sociotécnicos incluem um ou mais sistemas técnicos,mas, decisivamente, incluem também conhecimento de como um sistemadeve ser usado para alcançar um objetivo maior. Isso significa queesses sistemas têm processos operacionais definidos, incluem pessoas(os operadores) como partes inerentes do sistema, são regidos pelaspolíticas e regras organizacionais e podem ser afetados porrestrições externas, como leis e políticas regulamentadorasnacionais.” [note] SOMMERVILLE, Ian. Engenharia de Software. 8 ed. São Paulo: Pearson Addison-Wesley, 2007. p . 15. [/note]

Continua o autor a relacionar as propriedades dos sistemas sociotécnicos. Os sistemas sociotécnicos possuem propriedades emergentes, ou seja, que surgem do inter-relacionamento das partes mas que não estão presentes em nenhuma delas isoladamente. Estas podem ser funcionais – todas as partes colaboram para atingir um objetivo – e não-funcionais – relativas ao comportamento do sistema em seu ambiente operacional. São exemplos dessas propriedades a confiabilidade, o desempenho, a segurança, a disponibilidade entre outras. Como dependem de operadores humanos, os sistemas sociotécnicos são não-determinísticos, ou seja, podem apresentar comportamentos e saídas distintas a partir das mesmas entradas. Por fim, existe uma externalidade em seus objetivos. Estes não dependem apenas dos sistemas em si, mas dos objetivos organizacionais [note] Op. Cit. p. 15 et seq. [/note] .

Por exemplo, grandes escritórios de advocacia possuem sistemas sociotécnicos conhecidos pelo mercado como controladorias. Este sistema tem por objetivo funcional fazer com que todos os atos processuais sejam cumpridos de maneira correta e no tempo certo, de modo a atingir o objetivo organizacional da banca de prestar o serviço de acompanhamento contencioso de um cliente com milhares de ações de consumo, e.g.. Ele é composto por diversos sistemas técnicos computacionais: um ou mais sistemas de registro de casos (case management system), sistemas de comunicação (mensageiros, sistemas de e-mail, sistemas de chat internos, sistemas telefônicos) e sistemas de acompanhamento de publicações (informadores jurídicos ou recortes). Mas também é composto pelas pessoas que operam esses sistemas (controladores), que possuem treinamento e um conjunto específico de conhecimentos para cumprir as tarefas de acompanhamento de publicações, de lançamento e conferência de prazos e de verificação de erros. Essas pessoas realizam estas tarefas de acordo com procedimentos operacionais daquela organização. Este trabalho possui requisitos (propriedades emergentes não-funcionais) de qualidade (volume aceitável de erros e omissões), de velocidade (tempo para lançamento de prazos), de volume (quantidade de prazos lançados por hora por pessoa) e de segurança (sigilo e acesso às informações do cliente), por exemplo.

Estas considerações permitem-nos situar o tema de modo preciso. Portanto, quando falamos do impacto da tecnologia na atividade jurídica estamos, na verdade, a falar do impacto dos novos sistemas técnicos (hardwares e softwares) nos aspectos humanos e organizacionais dos sistemas de informação compreendidos como sistemas sociotécnicos. Ou seja, como as melhorias e novidades técnicas computacionais impactam e alteram os seres humanos e as organizações que com elas se entrelaçam no cumprimento dos objetivos organizacionais e individuais daqueles que realizam e demandam atividades jurídicas (bancas de advogados, poder judiciário, empresas e pessoas) nas suas dimensões cognitivas.

Vencida a necessidade inicial de delimitação terminológica é possível abordarmos a evolução dos serviços jurídicos de Susskind para, então, dentro dela interpretarmos as distintas transformações tecnológicas da atividade jurídica, conforme já havíamos mencionado ser nossa intenção na introdução deste artigo.

4) A evolução dos serviços jurídicos

Richard Susskind é um estudioso dos impactos da tecnologia sobre o Direito há muitos anos, e identifica uma tendência geral à comoditização[note] Do inglês commodity, mercadoria fungível e substituível, negociada com base principalmente no preço. [/note] da atividade jurídica[note] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers. An Introduction to your Future. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2017. p. 25 et seq. [/note] . Nesta seção analisaremos seu diagrama usando como exemplo das diversas fases apontadas pelo autor as tecnologias de document assembly ou de automação de documentos.

Mas vejamos primeiramente o diagrama:

Figura 1 – A evolução dos serviços jurídicos

Fonte: SUSSKIND, 2017

Existe grande resistência ao movimento de comoditização do serviço jurídico. O ideário dos juristas é impregnado de noções de exclusividade, de personalização, de intelectualidade e de complexidade do trabalho jurídico que o tornariam fortemente refratário à fungibilidade e à indiferenciação características das commodities. O jurista aprende desde os bancos escolares que cada caso é um caso a requerer “a atenção da Suprema Corte” e esse ethos patrício seria constantemente reforçado pela literatura e pela dramaturgia, “na qual advogados procuram diligentemente por provas cabais (smoking guns) e brechas legais (loopholes)”[note] Op. cit. p. 26 [/note] e, porque não dizer, pela vaidade corporativa.

Entretanto, defende Susskind que a contraposição do serviço jurídico como algo único – trabalho de alfaiate (bespoke[note] No original “bespoke”, ou seja, feito por um alfaiate para servir exatamente numa pessoa: “A bespoke suit is an outfit that has been customized, made to measure, and tailored for the precise contours and topography of its owner.” (Op. cit. p. 26) [/note]) – ao serviço comoditizado trata-se de falsa dicotomia:

Na prática,muito do trabalho de bons militantes não é realizado de modopersonalizado. […] Surgem problemas difíceis que requerem, semsombra de dúvidas, atenção personalizada; mas, de modo muito maisfrequente, advogados são demandados a abordar problemas muitosemelhantes a outros com os quais eles já lidaram no passado. Defato, uma das razões que levam clientes a preferir um advogado aoutro, uma firma a outra, é precisamente porque eles acreditam que oadvogado ou a firma já realizou trabalho similar anteriormente.[…] Ao contrário [da opinião corrente], os clientes esperam umgrau de padronização.” [note] “In practice, much of the work of good practitioners is not undertaken in a bespoke manner. […] difficult problems do arise that undoubtedly require bespoke attention; but, far more frequently, lawyers are asked to tackle problems which bear a strong similarity to those they faced in the past. Indeed, one of the reasons clients select one lawyer over another, or one firm over another, is precisely that they believe that the lawyer or firm has undertaken similar work previously. […] On the contrary, clients expect a degree of standardization.” Op. cit. p. 27-8. [/note]

Ou seja, ainda que existam situações que requerem soluções criadas especificamente para o episódio em tela, na maior parte das vezes os advogados (consultivos ou litigiosos) e os membros do sistema público de justiça lidam com problemas que guardam entre si grau de semelhança e repetição, o que é demonstrado, inclusive, pela necessidade de uniformização das decisões jurídicas pelas cortes superiores para a manutenção da coerência do ordenamento.

Todos os juristas partem de algum repertório previamente constituído, sobre o qual baseia seu trabalho daquele instante. Um advogado consultivo ao redigir um acordo de quotistas certamente conta com os demais contratos que ele já fez anteriormente, ou alguém de sua banca, ou um tutor, como ponto de partida. O mesmo vale para os juízes que repetem boa parte (ou quase integralmente) as mesmas sentenças para casos semelhantes; e para os advogados litigiosos, que possuem seus modelos de peças; e, assim por diante. Ao longo da vida jurídica, cada operador do direito e cada equipe jurídica desenvolve seu conjunto de templates, de checklists, seu repertório de cláusulas e argumentos, sem os quais a profissão jurídica seria assemelhada à punição de Sísifo, forçando-nos a recomeçar do zero a cada dia.

Mesmo sem possuir qualquer ferramenta de document assembly, ou seja, contando apenas com suportes físicos (ou mesmo digitais, já que a diferença seria apenas de meio, não de modo), todo jurista possui um conjunto de documentos, um repositório de textos que é constantemente revisitado e em cima do qual constrói o seu trabalho. Esses documentos constituem, em boa parte, o patrimônio intelectual de uma banca de advogados e sempre foram compartilhados entre os colegas de profissão, diretamente ou por meio de publicações especializadas de modelos, ou mesmo objetos de cobiça, quando uma nova tese era levada a juízo por advogado de renome para ser avidamente copiada por muitos.

Entretanto, o advento dos sistemas de informação computadorizados passou a permitir que estes padrões fossem incorporados em ferramentas técnico-informáticas. Por exemplo, tornou-se possível que um determinado repertório de cláusulas contratuais, sempre reutilizadas em diversos instrumentos (cláusulas de multa, de distrato, de arrependimento, etc.), bem como trechos sempre presentes mas apenas com variação de dados circunstanciais (qualificação das partes, descrição dos serviços prestados ou dos bens vendidos), fossem transformados de arquivos de papel ou eletrônicos (aqui o meio não faria diferença se o arquivo eletrônico fosse usado apenas como “papel no computador”), em softwares de elaboração de peças e documentos (as chamadas tecnologias de document assembly ou de document automation).

São exemplos deste tipo de tecnologia softwares estrangeiros como o HotDocs, Contract Express e nacionais, como a NetLex e a LoopLex. Estes sistemas permitem a criação de formulários eletrônicos que encerram árvore de decisão e diversos campos variáveis. Uma vez criados estes formulários, o operador do dia a dia responde a uma série de perguntas (e.g., ao elaborar uma defesa, se existe litispendência) e conforme suas respostas, campos são oferecidos (se existe litispendência deve ser informado o número do processo e a comarca) e o texto padrão quase acabado ou acabado é gerado. Esta sistemática garante a qualidade do documento final, uma vez que funciona como um checklist automatizado, permite a validação do conteúdo e da obrigatoriedade das informações, evita passagens contraditórias e, conforme a tecnologia, conjuga gênero, número e padroniza a formatação.

Além disso, estas plataformas acabam por se tornar base de conhecimento do advogado ou da equipe, melhoram o versionamento dos documentos e reduzem impactos de rotatividade de colaboradores, tais como a curva de aprendizado organizacional, a perda de conhecimento e a integração de novos componentes.

Observemos, entretanto, que uma vez que o conhecimento jurídico foi incorporado a um sistema de informação computadorizado, o nível de formação requerido do operador final torna-se menor. Ao invés de possuir habilidades de pesquisa e redação e conhecimento jurídico (dogmática e direito positivo) propriamente ditos, o processo de elaboração de documentos por meio de tecnologias de document assembly requer apenas a capacidade de extrair informações de uma fonte e informar os dados ao sistema. Continuando o exemplo da defesa acima, o operador humano requer treinamento apenas para consultar sistemas de informação processual, acessá-los e informar se existe ou não litispendência, não precisando de compreender a lógica processual. Destarte, os serviços jurídicos ganham a possibilidade de serem externalizados, ou seja, de passarem a ser executados “fora” dos departamentos jurídicos ou das mesas e mentes dos juristas:

[…] se a redação de contratos de trabalho, pelo menos paraa maior parte dos empregados, envolve nada mais do que completarformulários online, então porque essa tarefa não pode serrealizada diretamente pelo departamento de recursos humanos daorganização do cliente?” [note] “[…] if drafting employment contracts, at least for the majority of employees, involves no more than completing a form online, then why can this not be done directly by the human resources department within the client organization?”. SUSSKIND, Op. cit., p. 29. [/note]

A externalização dos serviços jurídicos pode se revestir dos três modelos de distribuição: serviços pagos, gratuitos ou colaborativos. O diagrama de Susskind não aborda explicitamente modelos mistos, nos quais podemos ter conteúdos e funcionalidades gratuitos mescladas com funcionalidades pagas (modelo conhecido como freemium) e com conteúdos produzidos pelos usuários. Entretanto, também não os elimina e é maleável o suficiente para compreendermos diversas iniciativas.

Citemos, como exemplos de externalização de serviços, o LegalZoom e o Rocket Lawyer. Ambos oferecem formulários padrão, que podem ser preenchidos diretamente pelo usuário, para a elaboração de dezenas de documentos jurídicos, tais como testamentos, divórcios, contratos de compra e venda e aluguel de imóveis, pedidos de patente e registro de marcas e vários outros. O modelo de precificação de ambos compreende a possibilidade de elaboração de alguns documentos de modo gratuito, outros requerem pagamento e ainda as plataformas permitem a conexão com advogados para a solução de dúvidas ou a revisão dos documentos criados.

Por exemplo, quando da redação deste artigo (março de 2018), o Rocket Lawyer oferecia uma assinatura de U$ 39,95/mês que dava direito a diversos serviços, tais como a elaboração de documentos e questionamentos a advogados. Caso a pessoa não fosse assinante, poderia contratar serviços avulsos. A elaboração de um documento custava U$ 20,00. Eles também ofereciam um serviço chamado Document Defense que, por apenas U$ 10,00, colocava o usuário em contato com um advogado que o ajudaria no caso de descumprimento de um documento elaborado pelo site:

Document Defense te protege caso uma disputa surja de umdocumento elaborado na Rocket Lawyer. Apenas entre em contato com aRocket Lawyer e forneça a documentação relevante, e você seráconectado a um advogado Rocket Lawyer On Call® que irá analisar asituação e preparar uma resposta. Ainda que uma carta possafuncionar em várias situações, seu advogado Rocket Lawyer On Callirá decidir o melhor caminho a ser tomado para a sua situação.” [note] “Document Defense helps protect you in the event that a dispute arises with your completed Rocket Lawyer document. Just contact Rocket Lawyer and provide the relevant documentation and we will connect you with a Rocket Lawyer On Call® attorney to review the situation and prepare a response. While a letter can work in many situations, it’s up to your Rocket Lawyer On Call attorney to decide the best course of action for your situation.”Disponível em: https://www.rocketlawyer.com/document-defense-benefits.rl <Acesso em: 10/03/2018> [/note]

Esses serviços não chegaram ao mercado sem se depararem combarreiras corporativas, especialmente ao que é chamado nos EUA deUPL (unauthorized practice of law), o nosso exercício ilegalda profissão. Barton nos fornece um bom histórico dos desafiosenfrentados pelo LegalZoom, especialmente diversos processospor UPL movidos pelas diferentes divisões estaduais da ABA (AmericanBar Association). É significativo, entretanto, que a partir domomento em que uma plataforma como a LegalZoom passa a contarcom diversos investidores e com uma rede de advogados conselheiros,seu peso social passa a se contrapor de modo significativo à pressãocorporativa da guilda de advogados [note] BARTON, Benjamin. Glass half full. The decline and rebirth of the legal profession. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 91 et seq. [/note].

O diagrama de Susskind pode ser aplicado à análise do rol de tecnologias que hoje se apresentam ao mercado jurídico, conforme as distintas categorias narradas na introdução. Por exemplo, o setor que mais congrega startups no radar da AB2L é o de resolução de conflitos online com cerca de 17 empresas. São empresas que se utilizam da internet e de tecnologias de comunicação remota para prestar serviços de mediação, conciliação e arbitragem. O serviço de proposição de acordos para causas repetitivas (direito do consumidor, e.g.) é tradicionalmente baseado em tabelas de valores de acordo fornecidas pelas grandes empresas às assessorias externas e aos departamentos jurídicos. Sempre contou, também, com termos de acordo padrão, com metas de desempenho relativas a prazos e valores. Várias bancas de advogados realizam serviços de conciliação em massa, task forces para redução de estoque processual ou, no caso do poder judiciário, são conhecidas as semanas de conciliação[note] Aliás, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) realiza, desde 2006, a Campanha em prol da conciliação, que envolve os Tribunais de Justiça, os Tribunais do Trabalho e os Tribunais Federais de todo o país. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao-portal-da-conciliacao/semana-nacional-de-conciliacao>. Acesso em: 04 jan. 2018. [/note]. Estes serviços contam normalmente com equipes especialmente treinadas no procedimento em tela, que recebem uma listagem de processos a ser distribuída entre cada um dos componentes. Estes seguem um fluxo de contato com o ex adverso ou seu representante, oferecem a proposta de acordo segundo a tabela mencionada, perfazem o cadastro dos contatos e dos dados da negociação, redigem os termos de acordo a partir de modelos e protocolizam os referidos termos no poder judiciário.

Com o uso de sistemas de informação computadorizados, todo esse processo pode ser feito a partir de uma mesma plataforma de gestão, que pode realizar parte (talvez todas) estas etapas automaticamente. Imaginemos um sistema de informação gerencial que registra em um banco de dados todos os processos a serem submetidos ao trabalho de conciliação a partir de consultas automáticas aos sites dos tribunais e aos diários oficiais eletrônicos. Imaginemos um sistema que, ao monitorar as publicações registra sempre uma nova ação contra a empresa, perfaz o cadastro daquela pessoa e do seu advogado neste mesmo sistema recorrendo a várias fontes cadastrais e, conforme o perfil do consumidor, “entra em contato” por meio de SMS, e-mail, mensageiros eletrônicos, assistentes automáticos de voz, e propõe um acordo. Caso seja necessária a intervenção humana, o sistema pode distribuir o processo de negociação para conciliadores que trabalhem em suas casas (home office) e que são remunerados de acordo com o número de conciliações bem sucedidas e metas de valores de conciliação. Deixo para o leitor o exercício de situar esse sistema no esquema de Susskind, identificando em qual ponto o trabalho é standardized, systematized ou já foi externalizado e assumiu distintos modelo de cobrança e monetização. Provoco o leitor a refletir, outrossim, sobre a complexidade da formação jurídica requerida da equipe, do tipo de profissional a trabalhar no desenvolvimento e operação deste sistema (serão todos juristas?), dos custos e da escala da prestação destes serviços, da velocidade e do diferencial deste serviço em relação a outras possíveis plataformas, enfim, em todas as características da proposta de valor na medida em que este serviço caminhou em direção à comoditização.

5) Aplicações de inteligência artificial – NLP e Jurimetria

Paralelamente ao diagrama de Susskind precisamos considerar os impactos dos recentes avanços da inteligência artificial (IA) à prestação de serviços jurídicos. A expressão tem sido largamente utilizada nos últimos tempos, especialmente em esforços de marketing das legaltechs, mas raramente é definida, uma vez que a própria definição de inteligência é extremamente vaga e difícil. Ao invés de adentrarmos na complexa seara, vamos destacar, aqui, algumas aplicações que têm sido identificadas como aplicações de IA ao direito[note] Sobre os diversos possíveis sentidos de inteligência artificial, ver a síntese de Russel e Norvig. Os autores dizem que são normalmente atribuídos quatro sentidos à expressão: pensar como humanos, pensar racionalmente, agir como humanos e agir racionalmente. RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Artificial intelligence. A modern approach. New Jersey: Pearson Education, 2003. p. 2 et seq. [/note].

O Direito não é composto por insumos ou por dados diretamente processáveis por computadores. A maior parte das informações jurídicas (leis, casos, peças processuais, contratos, decisões judiciais, depoimentos) está depositada em textos que são redigidos em linguagem natural, i.e., idiomas como o português, o inglês ou o francês. Estes idiomas possuem características que tornam as informações depositadas de acordo com suas regras extremamente difíceis de serem processadas por uma máquina[note] GOLDBERG, Yoav. Neural network methods for natural language processing. San Rafael: Morgan & Claypool Publishers, 2017. p. 1 et seq. [/note] . As linguagens naturais são simbólicas e discretas [note]Discreto é oposto a contínuo. A matemática discreta é o ramo da matemática que lida com números inteiros, problemas de contagem e combinação. É distinta do Cálculo, que lida com números reais, funções reais num espaço numérico contínuo. “Matemática Discreta é a parte da matemática que estuda objetos discretos. Aqui discreto significa aquilo que consiste de elementos distintos ou não conectados.” ROSEN, Kenneth. Discrete mathematics and its applications. 3rd ed. New York: McGraw-Hill International Editions, 1995. p. xxi. Tradução nossa. [/note] ou seja, são compostas por símbolos cujo significado é externo e independente de suas representações e não há operações matemáticas simples capazes de transformar um símbolo em outro. E.g., quando estamos lidando com cores, que são representadas por números numa escala RGB, cálculos simples (aritmética básica) são capazes de transformar o verde em vermelho, mas não existe uma operação simples que transforme a palavra “verde” na palavra “vermelho”. As linguagens naturais são composicionais. Palavras são formadas por caracteres e sentenças por palavras. Para descobrir o sentido de um texto é necessário trabalhar com longas sequências de palavras, ou mesmo com o documento inteiro. Essas características fazem com que as linguagens naturais sejam esparsas, ou seja, o número de frases possíveis é virtualmente infinito.

Entretanto, nos últimos anos, uma área que avançou tremendamente foi justamente a de processamento de linguagem natural (NLP – natural language processing), que por meio de aprendizagem de máquina (machine learning) ou por análise estatística[note]MANNING, Christopher; SCHÜTZE, Hinrich. Foundations of statistical natural language processing. Cambridge: The MIT Press, 1999.[/note] é capaz de perfazer diversas tarefas relacionadas à leitura, interpretação e geração de textos anteriormente exclusivas de seres humanos.

Por exemplo, sãohoje possíveis operações de recuperação de informações, taiscomo extração de entidades a partir de textos (NERnamedentity recognition), nas quais, dado um documento, é necessárioencontrar entidades como “Milão, John Smith, McCormikIndustries e Paris e categorizá-las num conjuntopré-definido de categorias, tais como LOCAL, ORGANIZAÇÃO, PESSOAe OUTROS” [note]GOLDBERG. Op. cit. p. 81. Exemplo curioso: na frase “Encontrei Paris Hilton no Hilton em Paris”, o trabalho de NER consiste em descobrir que Paris Hilton é uma pessoa, que Hilton é uma organização e que Paris é uma cidade.[/note].São hoje eficientes também operações de classificação detextos, text-to-speech (leitura automática) e speech-to-text(transcrição automática) e traduções automáticas.

Este tipo de tecnologia permite o uso comercial de aplicações tais como a Diligen ou a Luminance, que são sistemas que permitem a identificação de cláusulas contratuais e sua correta classificação. Sua aplicação consiste essencialmente em due diligences, nas quais uma grande massa de contratos precisa de ser revista para procedimentos de M&A. Um sistema como o Diligen permite que seja carregada uma grande base de contratos (e.g. milhares de contratos de aluguel para a fusão de duas empresas de shopping centers) e sejam identificadas e extraídas destes contratos as cláusulas de preço, de renovação, de multa, de desistência, etc, a partir de um conjunto pré-treinado de cláusulas ou de treinamento feito pela equipe usuária. A partir desta extração, podem ser analisadas anomalias, padrões e feitas estatísticas. Num processo de M&A, no qual apenas uma amostragem contratual seria revista a custos elevados, toda a massa de contratos pode ser analisada pelo mesmo valor ou por um valor menor.

Na advocacia contenciosa o NLP também encontra aplicações evidentes. Embora já estejamos habituados a contar com alguns dados estruturados dos sistemas eletrônicos processuais dos tribunais ou dos sistemas de gestão de casos das bancas de advocacia (nome das partes, dos procuradores, vara, comarca, valor da causa, etc), imaginemos sistemas capazes de extrair informações de uma massa de petições iniciais (e.g. o nome do produto defeituoso objeto da reclamação, do hospital no qual o procedimento se realizou, nome do gestor de uma equipe) e de realizar análises jurimétricas refinadas a partir destas informações. Trata-se do direito data-driven, nas palavras de Alexandre Zavaglia:

E a computação cognitiva e sua linguagem natural, nesse ponto, ajudam muito ao permitir a busca das informações na fonte, na própria petição inicial ou na sentença, ao transformar esses dados não estruturados em estruturados (com extração completa das informações: pedido principal e pedidos subsidiários, base legal, fatos ligados a cada pedido, dentre outros)” [note] COELHO, Alexandre Zavaglia. As 7 tendências para o uso de inteligência artificial no direito em 2018. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. p. 18 [/note]

A aplicação de processamento de linguagem natural em conjunto com os dados estruturados, cada vez mais disponíveis dos sistemas de gerenciamento de processos dos escritórios e dos tribunais, irá permitir plataformas de jurimetria[note] Jurimetria pode ser definida como “a disciplina do conhecimento que utiliza a metodologia estatística para investigar o funcionamento de uma ordem jurídica.” in NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria. São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2016. p. 115.[/note] bastante sofisticadas, verdadeiras crystal balls do direito, que nos dirão a probabilidade de êxito ou derrota conforme o tipo de causa ou pedido, a duração esperada, os valores envolvidos e os escritórios ou advogados mais competentes em determinada matéria, ou o perfil de cada julgador. Nesse sentido são dignas de nota plataformas para o direito estadunidense, tais como a Lex Machina, que fornecem uma análise estatística do poder judiciário daquele país, e a Premonition, focada no desempenho dos advogados. No Brasil, são várias as tentativas, conforme podemos depreender mais uma vez do já mencionado radar da AB2L na categoria Analytics e Jurimetria, somadas a outras não listadas, tais como o Convex da Softplan, empresa responsável pelos sistemas de diversos tribunais (TJ-SP, e.g.)[note]Disponível em <http://www.sajdigital.com.br/cases-de-sucesso/convex-legal-analytics>. Acesso em 18 Mar. 2018.[/note]. Entretanto, barreiras logísticas ainda impedem de maneira cabal sistemas de jurimetria realmente eficientes, tais como a existência de um grande número de processos físicos, captchas, higiene de dados ainda precária, limites de acesso aos sistemas dos tribunais e a inexistência de API (Application Programming Interface) de consulta pública aos dados dos tribunais amplamente acessíveis.

7) Conclusão

O cenário se encontra em fases iniciais de modificação e novas iniciativas são ainda muito recentes para avaliarmos a extensão do impacto de modo mais profundo. Entretanto, alguns aspectos já são claros:

  1. O movimento de comoditização dos serviços jurídicos é uma tendência cada vez mais nítida, e a grande variedade de empresas fornecedoras de sistemas técnicos e novos modelos de negócios que tratam o direito como commodity amplamente distribuível on-line confirmam este movimento.
  2. Os conceitos de atividades privativas dos juristas precisam ser revistos. Elaborados em épocas em que sistemas de informação computadorizados não existiam ou eram marginais, visavam evitar a falsificação de diplomas, a falsidade ideológica, fraudes ou outras formas de estelionato, mas não foram criados imaginando que o trabalho jurídico pudesse ser transformado e transferido para plataformas de prestação de serviços e que o conhecimento jurídico estivesse amplamente acessível. Esta revisão é urgente, sob pena de os órgãos corporativos, ao resistirem às mudanças, exercerem papel neo-ludista, ao invés de assumirem a vanguarda das transformações.
  3. A formação jurídica universitária precisa de ser urgentemente revista. Os currículos universitários são extremamente voltados para o conteúdo jurídico-dogmático, hoje amplamente acessível, e ignoram, de um modo geral, qualquer formação matemática, estatística, computacional ou de gestão. Num cenário nacional no qual temos mais de um milhão de advogados inscritos[note] Disponível em <http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>. Acesso em 18 Mar. 2018.[/note] estamos a formar profissionais preparados para o direito artesanal do século XX, e não os que irão lidar com as novas tecnologias, delas se aproveitar para melhor prestar o serviço jurídico ou mesmo assumir o protagonismo no seu desenvolvimento.
  4. Mas a mensagem é mais positiva do que apocalíptica. O jurista do futuro será liberto da parte manual e burocrática do trabalho, para pensar o direito, agir estrategicamente e se relacionar com seus clientes ou jurisdicionados. Portanto, a pergunta comumente repetida de se “a tecnologia vai substituir” o advogado ou o juiz é uma pergunta imprópria. Na verdade, a tecnologia, pelo menos no horizonte visível, irá substituir o profissional que perfaz tarefas mecânicas, incapaz de raciocínios jurídicos criativos e de constituir redes de contato e relacionamento. Entretanto, irá criar novos mercados. Podemos inventar os nomes que o mercado irá adotar para as novas profissões. Quem será o analista de jurimetria, o cientista de dados forenses, o engenheiro de soluções jurídicas, o advogado de sistemas, o gestor de relacionamentos jurídicos, e tantos outros postos de trabalho que nossa criatividade não permite vislumbrar? Quem será o professor que escreve manuais, leciona e forma esses novos profissionais? O novo sempre vem.

8) Referências

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SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers. An Introduction to your Future. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2017

9) Notas